A cantora e compositora Liniker foi a convidada do episódio 426 do Podpah, realizado na noite desta terça-feira (28), Dia Mundial do Orgulho LGBTQIA+. Na entrevista, Liniker, uma dos maiores vozes da música brasileira nos últimos anos, contou sobre o despertar para a carreira de cantora, o sonho de ser atriz, a amizade com Linn da Quebrada, a indicação ao Grammy e de uma violência sofrida ao ter um abuso divulgado por uma jornalista, entre outros assuntos.
“Meu maior sonho era sobreviver. Tinha muito medo de não conseguir, de ter que voltar. Sofri muito e sabia que se eu contasse para minha mãe ela ia me buscar e eu teria voltado para Araraquara. Só que meu sonho era muito maior [que as dificuldades]. Além do meu sonho era sobreviver, era também me formar como atriz. Sempre quis fazer cinema, sempre quis ser profissional de teatro, só que foi muito lindo como a música foi minha parceira. Tanto é que cheguei em Santo André com um violão. Muitas vezes na minha formação, a gente queria fazer uma cena com música e eu estava sempre propondo alguma coisa. Aí, de repente, para sobreviver, eu decidi ‘passar o chapéu’ em São Paulo. Tinha um bar na praça Roosevelt que eu tocava de domingo passando o chapéu com outro cara, o Jeferson, que era da minha turma. Já tocava as minhas músicas e fazendo outras versões e era o meu dinheiro da semana às vezes. Em um dia bom eu tirava 20 reais. Acho que o máximo foi 40 [reais~]. E eu dividia sempre o o Jeferson, o que é justo é justo. E isso não é 2002, foi em 2014, 2015”.
“Eu queria ser alguma coisa relacionada à arte. Minha família é de sambistas, pagode. Minha mãe sempre teve uma relação com a dança. Em Araraquara tem um baile chamado “Baile do Carmo”, criado de pretos para pretos. E a minha família envolvida nisso a vida inteira. Eu cresci nesse lugar de contexto cultural de chegar nos lugares e tomar conta, na música, na dança, na feijoada. Minha mãe me criou sozinha, então muitas vezes eu ficava com alguém ou minha mãe tinha que me levar. E nessas vezes que minha mãe me levava eu ficava curiosa, era sempre muito curiosa, e acho que isso me possibilitou ser mais à frente sobre a arte principalmente e sobre me ver artista”.
“Eu demorei para assumir [que eu era cantora]. Eu tinha vergonha. Achava que, se eu começasse a cantar, eu ia ser exigida a cantar nos churrascos da minha família. Por mais para fora que eu sempre fui, também sempre fui muito tímida. E na minha família sempre teve essa coisa de “vai, canta, mostra!”. Eu tinha medo nesse lugar. Mas aí essa coisa foi se dissipando. Teve esse momento de me apresentar para a minha família. No meu aniversário de oito anos que o tema era Tarzan inclusive, e aí tem uma foto minha dançando ‘É o Tchan no Egito’ e uma roda todo mundo me olhando”.
“Eu fui uma criança que cresci no interior e tive essa referência no Baile do Carmo. Araraquara é uma cidade onde se escuta diversos gêneros musicais e eu ali especificamente eu fui englobada dentro do universo da minha cultura preta. Foi no Baile do Carmo que eu fui saber o que era charme, rap, R&B, soul, o que era Djavan. Djavan é um ritmo musical, então acho que isso me deu um pouco de noção até para o que eu faço hoje. É muito baseado no que a minha família me passou”.
“Quando eu cheguei em Santo André sozinha com 18 anos, 150 reais na bolsa, um violão nas costas e uma mala de roupas. Cheguei no dia 2 de fevereiro de 2014. Eu ia passar só duas semanas porque depois eu ia para o processo seletivo da escola [de teatro]. Eu vim, passei, liguei para a minha mãe e falei que ia passar o primeiro mês lá e abril eu voltava para Araraquara na Páscoa e vemos o que fazer, mas eu vou morar aqui. Lembro que minha mãe ficou muito feliz e ao mesmo tempo muito preocupada”.
“Nessa época de Santo André quem eu encontro? Lina! Moramos juntas porque Lina era do terceiro ano dessa escola, e eu vou morar na casa da Lina. Tinha um menino de Araraquara chamado Igor que já morava em Santo André e me disse que morava numa casa e disse que eu podia ficar lá. Aí fui, cheguei, Lina não estava lá, acho que estava no Rio. Aí conheci as pessoas, todo mundo me ajudou para o teste, a ensaiar os textos, todo mundo era da escola de teatro, era ator ou atriz e estavam ali tentando sobreviver. Aí a Lina chega no final dessa semana, eu abro a porta para ela e falo ‘Oi, eu sou a Liniker’. Foi nosso primeiro encontro. No começo ela demorou para entender que me amava. Eu a amei de cara porque eu sabia dela antes dela chegar [na casa]. O povo já me falava dela, explicava quem era ela. Tanto que quando eu vou abrir a porta para ela eu já abro com intimidade”.
“A gente morava em nove pessoas e ela [Lina] tinha quarto sozinha. Como ela já morava lá há dois anos, as pessoas foram saindo e ela ficou com um quarto só para ela. Eu cheguei e fui dividir quarto com ela. Às vezes ela me deixava dormir no quarto e às vezes eu dormia na sala [risos]. Moramos juntas um ano e meio”.
“Além da responsa do som, e acho que estou conseguindo reverberar só agora depois de tanto tempo, [o sucesso] foi um dos momentos mais violentos da minha vida, onde a minha transição foi toda assistida pela mídia. E as pessoas eram muito violentas, invasivas. Nunca era sobre meu trabalho que era dito, era sempre sobre a minha identidade. E por muito tempo a gente tentava falar do disco, era muito difícil falar da minha música, era muito difícil falar dos discos que a gente estava fazendo. E a mídia, os jornais, todo mundo falando muito desse lugar do gênero. O que também foi muito importante porque foi um momento do Brasil outros artistas começaram a surgir com muita força...Pablo [Vittar], Lina, As Bahias e a Cozinha Mineira, muita gente. Foi importante para mim, para entender que eu não estava só, mas ao mesmo tempo era muito difícil porque eu me senti muito violentada. E eu só fui entender essa violência dois anos atrás, em terapia, falando sobre isso, entendendo o quanto isso foi violento.”
“Eu vivia driblando. Eu falava um pouco [sobre a transição] e depois eu queria falar sobre o meu disco. Aí quando eu ia ler a matéria, não era sobre o meu disco, era sobre minha identidade. E isso é importante porque as pessoas começam a entender que é possível ser de outro jeito, mas eu queria falar da minha música, do meu trabalho. E até hoje eu sigo querendo falar do meu trabalho, do que eu tenho transformado na minha vida artisticamente na minha vida e na vida de outras pessoas. Mas esse lugar reducionista, onde a gente só cabe em um mês, em uma data, em uma pauta, é um lugar muito restrito e mínimo, quando a gente pode falar de muitas coisas. O tempo inteiro nesses seis anos de carreira foi cansativo porque eu precisava falar do meu trabalho e a mídia queria falar da minha identidade”.
“Até que teve uma entrevista que eu dei e foi muito violenta porque nessa entrevista a jornalista havia falado sobre um abuso que eu sofri e que a gente havia falado em OFF antes, e eu não havia falado nem para a minha família desse abuso. E aí eu falei: ‘não dou mais entrevista, eu preciso me fechar’. Estava no momento do “MeToo”, a gente dividiu coisas pessoais ali antes da entrevista, eu só vi que ela colocou na matéria depois que a revista foi impressa. Então além de tudo na minha vida ser nesse lugar do gênero, da identidade, teve essa grande violência que foi falar de uma coisa que é importante ser dita, mas eu não estava preparada ainda para dizer aquilo, por exemplo, para a minha mãe. Eu não queria falar daquilo publicamente, como tudo na minha vida estava exacerbado e público. Isso é muito foda, foi me tornando uma pessoa mais reservada e mais estratégica também, sobre cuidar desse lugar que é tão íntimo e que se publiciza para ser a pauta, o boom, a bomba, o chamariz, e querer falar do meu trabalho e de coisas que as pessoas realmente ouçam e me respeitem por isso”.
Escritora, autora da duologia "A Princesa e o Viking" disponível na Amazon. Advogada e designer de moda. Desde 2008 é blogueira. A longa trajetória já teve diversas fases, iniciando como Fritando Ovo e desde 2018 rebatizado como Leoa Ruiva, agora o blog atinge maturidade profissional, com conteúdo inovador e diferenciado. Bem vindos!
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