Apagamento racial e geográfico: Ronaldo Fernandes conduz experimento cênico sobre sua trajetória

agosto 26, 2022

Ator, diretor teatral e dramaturgo pernambucano também conecta peça teatral ao seu recém-lançado livro de poemas “Avôa” (editora Paraquedas), que busca construir identidade em meio ao abandono, racismo e opressões


Em setembro, o dramaturgo, ator e diretor teatral Ronaldo Fernandes apresenta seu solo “Amâncio”, dirigido por Marcus Di Bello. O espetáculo criado durante a pandemia a partir das experiências de vida do dramaturgo e ator pernambucano, dentro da trajetória de descoberta de sua negritude e dos processos de apagamento de sua origem nordestina, bem como as violências impostas contra a sua família pela orientação sexual de seu tio Amâncio, personagem principal da peça e elemento central disparador para a criação deste projeto. 


“As vivências de um homem negro que só reconheceu sua negritude recentemente e do seu tio pernambucano, negro e homossexual que não podia viver seus desejos e vontades, não trata apenas de questões individuais, mas, sobretudo, de um Brasil excludente, que traz na lógica de sua formação um processo histórico de violência contra os negros, nordestinos e homossexuais”, frisa Ronaldo.


O espetáculo foi concebido exclusivamente para o ambiente digital (plataforma Zoom) e convida o público a fazer um “passeio” pela casa do ator e dramaturgo, enquanto relembra suas memórias. O tom narrativo atravessa toda a ação do texto, seguindo o fluxo da memória, que ora apresenta um fato do passado, ora nos remete ao presente sem ser linear ou fixo a unidades de tempo e espaço. O fluxo da memória é explicitado com a divisão das cenas, que aparecem como estações emotivas e afetivas ou quadros do narrador-ator, que sempre sabe que o espectador está lá.


O experimento cênico ainda conta com produção da Cia Trilha de Teatro, direção de arte de Paola Caruso, técnica de som por Felipe Alves, trilha sonora de Pri Calazans e iluminação, além da direção, de Marcus Di Bello.


Quando espetáculo e poesia se encontram


A apresentação de “Amâncio” ocorrerá dentro do Festival Amoreiras — 1° Festival de Teatro LGBTQIA+ do Vale do Paraíba, no dia 15 de setembro; a apresentação conecta espetáculo ao seu recém-lançado livro de poemas “Avôa” (editora Paraquedas, 83 pág.), obra que nasceu de seu desejo de resgatar as memórias reais ou inventadas de sua avó, mãe, irmã, tio e amizades. A partir do registro dessas lembranças, os poemas do autor contam sua própria história, ressignificando momentos e personagens de sua trajetória a partir da autoficção. “Avôa” busca construir identidade em meio ao abandono, racismo e opressões.


Com prefácio do ator, roteirista e jornalista Celso Bandarra e orelha da escritora e também jornalista Viviane Pereira, “Avôa” se constrói de forma heterogênea, unindo eu-lírico e autor a partir de epígrafes que introduzem alguns capítulos. Nessa seleção de trechos, destaca-se a presença de Gilberto Gil, Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) e Henri Lacordaire no campo de referências do autor. As ilustrações e projeto gráfico feitos pela artista paraibana Luyse Costa ajudam na composição dessa multiplicidade que torna “Avôa” uma obra que fala de vida. 


O coração pulsante que Viviane vê no livro e no Ronaldo se faz presente na construção fragmentada dessa voz poética que se desloca o tempo todo, entre memórias, lugares e experiências. A vivacidade se faz presente e é destacada também no prefácio de Celso: ele afirma que os textos do livro mostram que emoção é para ser sentida, vivida e escancarada: no palco, nas redes sociais, na vida. E afirma: “Ronaldo faz isso de peito aberto. Se joga sem rede de proteção.”


A construção do eu em meio ao racismo, colorismo e o ser nordestino


Do interior de Pernambuco para uma grande cidade do Sudeste, Ronaldo fez esse e outros caminhos para chegar no aqui e agora. “Avôa” é o resultado dessa travessia, segundo o autor, porque ele — como homem negro, nordestino e com sexualidade que pulsa sem preconceito — precisou construir sua identidade sozinho. 


Suas referências literárias também circundam sua migração: o autor cita Clarice Lispector, João Cabral de Melo e Ariano Suassuna, todos autores com forte relação com seu estado de origem. E ainda vai além, também alcançando a portuguesa Grada Kilomba, do outro lado do Atlântico, que também é citada no livro a partir da frase “Eu não sou discriminada porque eu sou diferente, eu me torno diferente através da discriminação”que abre um capítulo com poemas sobre racismo, colorismo e ser nordestino.


Os deslocamentos do autor também envolvem a descoberta de si, seu corpo, sua arte, sendo o teatro parte desse processo. Nada mais natural então que ele liste Nelson Rodrigues entre suas muitas influências.


O que motiva a escrita de Ronaldo é o que ele capta ao seu redor e dentro de si enquanto vive: “Eu escrevo o que escuto. Uma fala dita por alguém, uma lembrança de algo que alguém me disse. Eu escrevo a partir da oralidade. Eu registro a oralidade.”  A linguagem, as temáticas e as referências escolhidas pelo autor para compor “Avôa” são propositais. Para ele, "a oralidade é ferramenta poderosa do povo negro e nordestino." Para Ronaldo Fernandes, “Avôa” é sobre abandono, mas sobre nunca se abandonar.

 





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